sábado, 28 de julho de 2012

Tinta da China

Não ficarei nem mais um minuto aqui. Já não suporto o cheiro desse perfume e nem aquela cadeira ali, da escrivaninha. Estou catando minhas coisas numa mala e vou-me embora. Não levarei tudo. Prefiro deixar duas ou três camisas maltrapilhas, pois, desta vez, precisa haver espaço para um pouco de rancor na bagagem. Estou partindo, mas não para longe. Saindo daqui, vou virar algumas esquinas, coisa pouca, e devo parar para tomar café. Na primeira mesa ou cantinho boêmio, vou abrir o meu caderno e vomitar tantas letras quanto meu estômago aguentar. Quero para fora de mim o teu nome e sobrenome. A tatuagem no braço esquerdo também sumirá. Algum cachorro na rua terá piedade e, com uma bela mordida, estraçalhará minha pele e babará sobre a tinta, fazendo justiça e incorporando a minha raiva. Vou chorar e rir, enquanto o pobre cão se alimenta de nós dois. Amor, Clarice, é carnificina. Quantas pessoas de bem conhecemos que terminaram suas bodas-de-não-sei-o-quê e saíram ilesos ao processo? Pausa dramática. Nenhuma, Clarice. Então deixarei o cão ir mordendo e roendo o meu osso. Vou estar feliz com minha dor. Olha, que maravilha. Nosso inferno é, agora, a refeição de um animalzinho. Só espero que nenhum bobão desesperado interrompa a refeição pela metade. Quando nada mais restar da tinta, permitirei que o matem e que me tirem dali. Ele e eu. Ambos mortos. O último, morto e amputado. A história terá fim na rua de um barzinho.