terça-feira, 25 de setembro de 2012

A Foice

Despendi do mundo, caí no abismo
Sem luz nem calor, afagou-me a solidão.
Aqui, o obscuro reina justíssimo
ninguém escapa da jurisprudência do consciente.
Não se ouvem gritos nem pranto,
O silêncio, o aniquilador involuntário;
Com sua foice, observa-nos soberano
À compaixão de um olhar terno, mata-nos
Preferindo poupar-nos de possuir um coração.
Não há de se questionar as sentenças do justíssimo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ojävne


               Eu sei que existe um lobo solitário na floresta. Não posso vê-lo, mas ouço urgentemente o seu pranto longínquo. Ojävne, a anciã, aquela que nunca nasceu e nunca morreu, insinuando que nossas dores assemelhavam-se, disse que eu fosse encontrá-lo na floresta. Sem dizer como fazê-lo, mas com uma ternura penetrante no olhar, segurou a minha mão e sorriu docemente, parecendo saber as minhas perguntas. Nenhuma palavra foi dita, mas também nenhuma se fizera necessária.                Acordamos algo em nossos pensamentos e então pus-me a andar.
               A floresta era vasta e amedrontadora. Diria assemelhar-se ao coração de um homem. Não poderia haver ousadia equiparável à tentativa de desbravá-la. Como em um coração, o desbravamento é perigoso. Por debaixo das pedras estão as verdades, que não à toa estão por debaixo das pedras. Retirá-las um peso que as comprime e contêm...o que poderia causar-nos?
               O que eu vejo é de uma luz deslumbrante que corta a escuridão da noite em feixes finos e diversos, fazendo-me lembrar da única vez que vi, deitando sobre a neve, a aurora boreal. Estava com meu pai, que olhava para o céu e para mim ao mesmo tempo. Vi todas aquelas luzes esverdeadas refletindo em seus olhos e senti que aquele homem de um trato nem tão fino assim era um pedaço da beleza do universo. Deveria haver um lugar de onde nascessem mais pessoas cujos olhos refletissem o verde da aurora. Eu estava ansioso para que realmente houvesse.
               Seguindo os feixes de luz, fui vendo a curiosa forma das árvores, cada uma possuindo um contorcido diferente. Quando em par, pareciam formar um arco de galhos e folhas. Portais, talvez, saudando a quem fosse adiante. Eu estaria perdido olhando para as árvores não fosse o uivo do lobo ecoando inigualável. Lembrei que estava ali para encontrá-lo. Mesmo não sabendo o porquê, devia fazê-lo.
               Caminhei a passos rápidos, intencionando não parar de ouvir o lobo. O som era claro. Agora correndo, num misto de ansiedade e desespero, fui em direção ao rio que cortava ao meio a floresta. Tomado pelo ímpeto, o adentrei. Era raso, as ondas que formaram-se com o meu movimento atingiam a altura da minha cintura. Pude sentir o frio cortante da água à medida que meu sangue corria cada vez mais regular dentro do meu corpo. Eu estava sozinho, dentro de rio e à procura de um lobo.
               Virei-me para a superfície da água e percebi algo no meu reflexo. Não eram os traços de um garoto, e sim os de um lobo. Entendi, espantado, estar à procura de mim mesmo. Dizia-me Ojävne o quão difícil era a tarefa de encontrar a besta em si. Era preciso, antes de qualquer outra coisa, perder-se na solidão, no questionamento, no vale da tristeza sem fim. Ouvir o coração é tarefa para os surdos, que ouvem o mundo por outros meios: pela gentileza do olhar, pelo sutileza do tato. Os surdos, que são chamados pelo lobo para o meio da floresta, convidados à descoberta de si e de suas perguntas, quase sempre sem respostas. Ali, admirando-me lobo, chorei ao ver meus  olhos brilharem uma luz verde. Daquele rio nasciam pessoas cujos olhos reluziam o a aurora.
               Depois de voltar para perto de Ojävne, senti como se soubesse o que deveria ser feito. Não mais paralisado pelo medo da floresta, que era o meu coração, decidi tudo fazer, certo da capacidade de realizar tudo quanto desejar.
               
            

domingo, 23 de setembro de 2012

Amour, 5 lettres.

Me permiti contar, ao menos desta vez, uma história real. Aliás, é a história mais importante das histórias. Muita atenção.

               Hoje em dia, todo mundo foge dos contos de fadas. O negócio é ter pé no chão, cada um no seu cada qual.  Se acontecer de nos gostarmos ao mesmo tempo, o que é uma baita sorte!, que sejamos no mínimo comedidos. Nada de amor que transborda, não. O ideal é, ou me tem parecido ser, um amor fracionado. Gotinhas tímidas, miúdas, que não matam a sede de ninguém, mas que também não saem por aí metidas a Tsunami, devastando tudo. Eu  não sabia nada disso, meu amigos, e nem me interessava por saber. "Pra quê diabos?", eu dizia. Esse era o metódico-racional-super-chatíssimo eu. Prazer. 
               Não irei me delongar dizendo o quão desacreditado eu era, pois seria ridículo gastar tempo descrevendo a respeito de mim o que todo mundo, alguma ou algumas vezes, já sentiu: a velha história de ser a "carta fora do baralho", a impressão lúcida de viver Hors de Lieu, como bem representa a expressão da língua francesa. O que me interessa, entretanto, é divulgar o processo e os efeitos da minha socialização com o danado do amor. Vejamos.
               Goethe é o seu nome. Minto, na verdade é Andressa, mas é preciso pedir as bençãos de Johann Wolfgang von Goethe antes de começar. O escritor alemão, que tanto influenciou o curso do pensamento literário europeu, é o padrinho do meu namoro. Foi no Goethe-Zentrum, pois, que algo de grandioso começou a germinar.
               Primeiro dia de aula, animação contida, vocês sabem. Todos empenhados em uma concentração que não existe, mexendo nos celulares que não iriam tocar, escrevendo o próprio nome no rodapé do caderno. E lá estávamos nós, duas almas jovens e curiosas.
               Ela andava bonito, eu não sei explicar. Só sei que vendo, percebi haver algo de especial naquele andar. Era desacelerado, mas não lento. O mundo se movia com pressa, mas não o passo. Aquele, tinha um tempo próprio. O tempo de ser bonito. Além disso, tinha a roupa negra, que juntamente com a boca sempre pintada de vermelho salientava a brancura insustentável de sua pele de mármore. Era um quadro, uma arte, pois me provocava os dons de um artista. Eu tive vontade de pôr minhas mãos nele e de misturar as nossas cores. Eu, com todos os tons da América Latina. Ela, com alguma coisa de Itália. Sempre gostei de diplomacia, capiche?
               Eu vinha de longe para assistir às aulas. Nos víamos todas às sextas pela manhã. Aprendemos muita coisa juntos. Ela era uma menina inteligente, dava gosto de estar perto. Anotava tudo com uma letra redondinha, lindíssima. "Ich bin Timo und ich komme aus Finland", era nossa frase. Eu, na verdade, não estava nem aí para o Timo, pois o que eu queria mesmo saber era de onde tinha vindo aquela garota interessante.
               Passamos um semestre assim, nesse encantamento intelectual. Gostávamos de estar perto, éramos inteligentes juntos. Contudo, faltando alguns dias para as provas finais, ela se afastou do curso, por motivo de uma cirurgia. Frequentei às últimas aulas sem a sua companhia, que, mal sabia eu, já era indispensável. Quem seria ela, afinal?
               As férias no Goethe coincidiram com as férias na UnB. Não havendo nada para fazer, eu passava o dia inteiro na internet. Escutei e (re)escutei todas as músicas do Blind Guardian, do Ozzy Osbourne e do Nightwish. Ao mesmo tempo, coloquei meu lado stalker em ação: vasculhei todo o orkut (sim, há dois anos as pessoas ainda usavam) tentando achá-la. O problema é que eu não sabia muita coisa além do nome "Andressa" e de um e-mail.
               Não consegui encontrá-la pelo nome, então forcei a memória e me lembrei de tê-la ouvido dizer, uma vez, que também estudava na UnB e que fazia o curso de Letras-Inglês. Sabendo disso, procurei, sem sucesso algum, em todas as comunidades estudantis. Na época, eu não usava muito o facebook, mas decidi arriscar. Procurei por horas e voilà, lá estava ela.
               Na mesma noite, tive um sonho. Sonhei com um anel que ela usava na mão direita. Um olho aberto, azul, bem desenhado. No contexto, havia magia. Sonhei com a feiticeira nórdica de cabelos ondulados e pele branca feito as nuvens. Acordei inquieto, acreditando na minha mente.
             Antes mesmo que o sonho ousasse se esvair, contei tudo à ela pelo facebook. Falei dos detalhes, das sensações. Nossa verdadeira interação havia começado naquele momento. Trocamos ideias, experiências e indiretas. Todos os dias ficávamos acordados até de madrugada conversando pelo msn. Um dia, prevendo a insônia iminente, eu disse que sentiria saudades logo que desligasse o computador. Ela disse "anota o meu número...bem, no caso de a saudade apertar". Passávamos horas digitando mensagens, gastei rios de dinheiro com créditos (na época, éramos de operadores diferentes). Bendita TIM.
               Em um belo dia, por volta das 2 da manhã, ela postou uma música do Rammstein, heirate mich, com a seguinte legenda "Meu namorado tem que me pedir em casamento assim: com fogos e essa voz grave alemã (do Till L., vocalista. Nota minha). Caso na hora". Indireta ou não, eu anotei esse desejo, e me propus a missão de conquistar aquela feiticeira. Começaríamos a namorar 15 dias mais tarde, na madrugada do dia 4 de agosta para o dia 5.
               A época em que tudo isso acontecia coincidiu com o prazo de entrega de formulários de monitoria na UnB e eu havia decidido que queria ser monitor de Cálculo 1. Como pretexto para vê-la, propus que ela fosse comigo até a universidade para eu entregar os papéis de requerimento no MAT-UnB. Desse modo, poderíamos conversar pessoalmente e com calma, visto que era período de férias e portanto não haveria quase ninguém circulando pelos corredores.
               Quando ela chegou, eu já havia resolvido a burocracia da papelada, que era justamente o pretexto, e a estava esperando sentando nas escadas da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). Quando a vi, esqueci todo o diálogo mental que vinha planejando. Linda, vestido de preto, com os lábios vermelhos que tanto adoro.
               Sentados em um dos sofás do Centro Acadêmico de Arquitetura, conversamos sobre tudo. Apesar do nervosismo, a presença dela me preenchia de confiança. Era gostoso estar novamente tão perto de uma pessoa como ela. Nem nos beijamos, o tom da conversa era mais de "vamos-confirmar-se-essa-isso-mesmo". E era.
                Saindo da FAU, fomos andar pelos corredores. Senti aquela mãozinha fina chegando próximo da minha. De repente, estávamos andando e rindo de mãos dadas. Não ficávamos nem namorávamos...só estávamos ali com os dedos entrelaçados.      
             Na hora de ir embora, demos uma "espécie" de beijo. Sim, "espécie". Ela sabe do que estou falando. Eu fiquei todo manchado de batom vermelho, parecia um palhaço. Pensando bem, palhaço é uma excelente comparação, pois eu estava radiante. Nos limpamos nos banheiros do departamento de Matemática. Eu, em 1 minuto. Ela...nem contei. Santo Odin!, que demora. Quando ela finalmente saiu, fez uma piadinha do tipo "é melhor começar a se acostumar, hein". Ah, moleque. Ponto pra mim.
               Quando coloquei os pés em casa, ainda estava anestesiado por uma felicidade que nunca havia sentido. Meu coração estava tão bobo de esperança, de magia e de futuro....Na mesma noite, continuamos a troca de mensagens e decidimos que nos queríamos bem. 5 de agosto: eu era um cara compromissado.
               Depois dessa noite, senti que minha vida havia mudado para sempre. Eu era uma nova pessoa, transformada pela vontade de zelar por alguém. A Andressa era, desde aquele dia, a minha fortuna e o meu coração.
               Tivemos dias maravilhosos. Lembro que na primeira vez que nos encontramos depois do status de oficialmente compromissados eu estava vestindo uma camisa do Rammstein, propositalmente escolhida para homenagear os alemães que estiveram presentes nos nossos flertes e conversas. Juntos, abraçados, ouvimos "The Persuit of Vikings", do Amon Amarth. Era um sacrifício ir embora, principalmente nas noites de frio, quando a 110 sul era tão propícia a uma boa caminhada.
               Aquele lugar ficou marcado na minha história de vida. Ela e eu andamos por toda parte, sempre à noite, conhecendo as pracinhas, passeando pelos lugares privilegiados pela natureza. Era tão espiritual, eu sentia a interação cósmica entre nós e o universo. Ela foi a minha religião, o meu religare. 
               Gostaria de escrever sobre cada momento que tivemos, mas o acesso a eles é dado somente à minha memória. Palavras não conseguem descrever o quão forte foi o sonho que vivi, e que ainda vivo.
               Escrevo sobre isso não por um motivo tolo, mas porque me orgulho da pessoa que me descobri há quase 1 ano e 2 meses. Um alguém mais empenhado, mais otimista e mais zeloso. Um alguém disposto a resolver problemas e que não mede esforços para fazer o melhor que pode à fim de oferecer um coração saudável e inteiro à pessoa que merece todo o meu amor, carinho e lealdade.
                Andressa Furlan é a rainha do seleto grupo de pessoas as quais quero sempre por perto. Além disso, é minha namorada, melhor amiga, guardiã e conselheira. É a mulher que admiro e respeito, que filtra os meus sonhos ruins, me devolvendo a paz.
                  Universo, muito obrigado. Sobre a minha cabeça são derramadas as bem-aventuranças de uma alma feliz.

Com amor,
Iago.
           
             

             
           
               

sábado, 28 de julho de 2012

Tinta da China

Não ficarei nem mais um minuto aqui. Já não suporto o cheiro desse perfume e nem aquela cadeira ali, da escrivaninha. Estou catando minhas coisas numa mala e vou-me embora. Não levarei tudo. Prefiro deixar duas ou três camisas maltrapilhas, pois, desta vez, precisa haver espaço para um pouco de rancor na bagagem. Estou partindo, mas não para longe. Saindo daqui, vou virar algumas esquinas, coisa pouca, e devo parar para tomar café. Na primeira mesa ou cantinho boêmio, vou abrir o meu caderno e vomitar tantas letras quanto meu estômago aguentar. Quero para fora de mim o teu nome e sobrenome. A tatuagem no braço esquerdo também sumirá. Algum cachorro na rua terá piedade e, com uma bela mordida, estraçalhará minha pele e babará sobre a tinta, fazendo justiça e incorporando a minha raiva. Vou chorar e rir, enquanto o pobre cão se alimenta de nós dois. Amor, Clarice, é carnificina. Quantas pessoas de bem conhecemos que terminaram suas bodas-de-não-sei-o-quê e saíram ilesos ao processo? Pausa dramática. Nenhuma, Clarice. Então deixarei o cão ir mordendo e roendo o meu osso. Vou estar feliz com minha dor. Olha, que maravilha. Nosso inferno é, agora, a refeição de um animalzinho. Só espero que nenhum bobão desesperado interrompa a refeição pela metade. Quando nada mais restar da tinta, permitirei que o matem e que me tirem dali. Ele e eu. Ambos mortos. O último, morto e amputado. A história terá fim na rua de um barzinho. 

terça-feira, 22 de maio de 2012

À côté de ta Fênetre

Embora houvesse chegado ao local adequado para partir, fui motivado por meus pensamentos latentes a não fazê-lo. Não ainda. Decidi andar um pouco mais, pelos caminhos que tão bem conhecia. Já na primeira parte do trajeto, deixei-me ser tomado pelo frescor daquelas lembranças que somente tu e eu sabemos. Por vezes penso que não são meras lembranças, pois rememoriá-las faz-me ascender, como da vez em que foram vividas com ineditismo, a sensação física de ter os dedos dormentes. Em seguida, houve a grande ladeira pela qual, com certa dificuldade, tive de atravessar, maz o fazia rápido e contente, pois sabia que ao final desta estava o caminho que mais agradava-me percorrer: aquele que levava meus passos com precisão de encontro aos teus. A essa altura, já não era mais senhor do meu corpo. Meus olhos lacrimejavam com teimosia irritante. Sentia-me frustado por não poder controlá-los, como também não podia controlar a velocidade dos meus passos, que aceleravam-se mais e mais. Precisa ver teus olhos. Percebi que isso era uma daquelas necessidades inquestionáveis do organismo: comer, beber e ver teu olhos. Finalmente passei pelos banquinhos, sendo o terceiro o mais importante de todos, pois ali conheci os teus anéis, os teus beijos e os códices da tua mente. Ali, também fui apresentado ao teus medos, que são, agora, os meus próprios, pois descobri nossa unidade irreparável. Digamos que a causa tenha sido o fato de que o sangue que percorre o corpo do guerreiro foi retirado dos lábios da feiticeira, portanto são um. Estando às vésperas da janela teu quarto, diminui o ritmo dos passos. Pus-me a esvaziar os pensamentos, pretendendo apenas sentir. Lentamente, prossegui. Posicionei-me diante da janela, que não estava muto além do alcance da minha visão. Sentei-me na grama. Já era noite, e tu sabes o quão imensamente aprecio a companhia da escuridão. Eu estava em casa. Lancei os olhos novamente para a janela. A luz estava acesa. Pelo vidro, pude notar gestos. Na verdade, não era mais um vidro, era um vitral. Um vitral gótico. Imaginei o que pudesse estar acontecendo por detrás daquele mosaico. Talvez estivesses dançando com um saia longa que a deixasse ainda mais bela enquanto dividia o ar conforme o desejo da tua cintura, ou ainda que estivesses praticando a magia antiga herdada pelas filhas de Odin. Independente do que fazias, havia graciosidade e misticismo  emanando do teu quarto, atingindo-me. Desejei ser aqueles vitrais. Desejei, também, não ser efêmero, para que pudesse desfrutar ilimitadamente de tua beleza pagã. Mas, a luz do quarto se apaga. Por alguns minutos tive a impressão de ter visto teus olhos mirando os meus. Não tentei fazer qualquer contato, que não a retribuição do olhar. Descobri, naquele momento, uma nova expressão do amor singelo: olhar os teus olhos negros na quase completa escuridão. Confesso nunca ter visto par de luzes tão incandescente. Daquele olhar, entendi a doçura das tuas palavras não proferidas. Bastava-me aquele olhar, tão somente aquele, para sentir o elo que havia entre mim e a garota do primeiro andar. Voltei pelo mesmo caminho em que fui, mas, desta vez, em harmonia com o universo. Vi os olhos da minha feiticeira e tudo estava bem.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Poema sem Nome

E jamais acreditaria no arquétipo da palavra escrita
Que se antecipa sedenta de sentenças prolongadas
Tampouco me importaria com o verbo traiçoeiro
Que lubrifica as ideias
Estaria atento, porém, ao ponto
Para que não brindasse com um fim precoce
aquele amor que ainda havia de ser lido.


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Zanir Caravan - Parte I

               Andamos por três noites seguidas até acharmos lugar onde fazer abrigo. Estava exausto. Luc, com seu alaúde, sustentava-nos a memória de havermos vivido dias de sol e festa sob o céu de Zanir. As mulheres do povoado rodopiavam suas longas saias coloridas no que pareciam ser reminiscências da musicalidade e espiritualidade ciganas. As crianças comiam o pão que trazíamos nas cestas e bebiam água com bastante urgência. Dos homens, por sua vez, podia-se entender pequenas lamentações. Eu os ouvia completamente quieto, prestando atenção a cada palavra, gesto ou sussurro, e algo me doía por estar longe do lugar que ousei chamar casa
              Zanir ficava ao noroeste de Cáfira, a cidade dos mercadores. Ao que tudo indica, jamais se soube de sua fundação, tampouco de seus primeiros habitantes. Havia apenas uma maneira sabida de chegar ao povoado, e era por meio da travessia do estreito de Zartre. De longe era possível temer a grandiosa árvore anciã, que saudava os que pisavam em suas terras. Lembro-me de estar sentado às margens de uma grande fogueira e escutar histórias fabulosas, quando criança. Os velhos rebuscavam a entonação a fim de atrair a atenção para o misticismo que envolvia o passado de nosso povo. Uma história, em especial, para sempre me encantou. Diziam, os velhos, que há muito nascera em Zanir uma jovem primogênita chamada Tysa, cujos olhos, negros feito a noite, jamais refletiam coisa alguma. Seu rosto era doce, branco e delicado, embora parecesse incapaz de sustentar o peso que carregava no olhar. Já crescida, mas ainda muito jovem, Tysa decidira partir do povoado. Nunca pôde deixar de notar o tom de estranhamento e receio com o qual sempre foi tratada. Por vezes esqueciam seu próprio nome e, em seu lugar, chamavam-na de Backsha, que significa semente negra em um dos três dialetos falados pelo povo de Zanir. Ao partir, Tysa levara consigo apenas três objetos: um caderno com as memórias que havia escrito da infância, uma grande bolsa para que guardasse frutas e pão, e um colar de zegot, dado às crianças primogênitas do sexo feminino. Então logo partira. Pelo que consta nas histórias contadas pelos velhos, Tysa caminhara por sete dias  e sete noites, parando eventualmente para recolher frutos ou descansar as pernas. No oitavo dia, sobremodo exausta das andanças, Tysa debruçou-se sob o leito de rio e teve o corpo levado pela correnteza, que cantava e repetia, em idioma desconhecido, a expressão: "unit esac". A melodia ecoava tristonha pelo rio abaixo enquanto levava Tysa, que tão jovem havia ido de encontro ao destino de ser para sempre singular.
               Olhei em volta. As mulheres continuavam a dançar. Constrangia-me, aquela alegria. Eu permanecia tristonho, mas não porque assim o desejava; coexistiam, dentro de mim, inúmeras faces de uma escuridão profunda, afastando-me da beleza genuína das saias. Procurei acalentar-me o coração com pensamentos que repousavam no amanhã, e no outro, e no depois. Acreditando haver esperança para o meu povo e para o meu destino, sobre a superfície de uma pedra alongada, adormeci. Naquela noite, dormimos todos agrupados. Todas as cabeças de cabelos negros debaixo do mesmo céu de estrelas.
               Mannëia já havia acordado quando dei por mim. Levantei-me em um impulso e senti dores por todo o corpo